segunda-feira, 31 de maio de 2010

Crítica às Obras de Grego Brasileiras

Julgo estranho a já famosa obra “Língua Grega – visão semântica, lógica, orgânica e funcional”, de Henrique Murachco, não citar a gramática de Antônio Freire em momento algum, já que é a gramática mais usada por nossos alunos. Provavelmente foi por meio dela que ele adentrou no ensino do idioma; é como se este autor, o tempo todo, estivesse escrevendo sua obra pensando nessa fantástica gramática, tentando numa crítica, superá-la, o que de longe, e muito, não chegou nem perto. A obra de Murachco, criticando as gramáticas de grego normativas, parece mais um tipo de dicionário para se aprender certas questões do idioma e da gramática grega que pouco ou nada contribui para o ofício do bom tradutor. Como o próprio Murachco diz, o grego se aprende traduzindo. Deve-se ainda dizer (quem critica deve também aguentar a crítica) que essa obra de Murachco é inescapavelmente resultado das gramáticas normativas, e como é crítica, não ajuda muito aquele que está adentrando ao ensino do idioma, pois, para entendê-la, se faz necessário já se ter algum conhecimento tradicional. Francamente achei um trabalho interessante. Parabenizo o autor, mas, infelizmente, no quesito viabilidade, ela está mais para tragédia grega do que obra épica helênica, pois, como já disse, a crítica de Murachco às gramáticas normativas só foi possível depois que ele passou a conhecer e utilizar a língua, mas isso ele obteve graças a essas obras, que ele tem de admitir, continuará sendo a melhor maneira de se aprender o idioma grego. A meu ver, Murachco está lamentavelmente equivocado; é irônico e bobo quando ele diz que “todas as abordagens das gramáticas e métodos tradicionais que tratam do estudo das línguas de fora para dentro, ou seja, da teoria para a prática, estão na contramão” (p. 11). Ora, quem geralmente está na contramão é aquele que está sozinho em relação à maioria, e não o contrário. O argumento de Murachco, inspirado provavelmente na velha luta dos linguistas de criticar as gramáticas normativas (e por isso tão bem acolhido), não tem sentido para estrangeiros que estudam um idioma, só quem poderia criticar as gramáticas de grego clássico e desenvolver um método melhor e superior para se aprender o idioma seriam os gregos do período clássico, e se conhecessem bem o idioma destino, e não um brasileiro no início do século 21, ou ele foi presunçoso ou ingênuo nesse seu desajuste de mira tão amador. Se eu fosse da equipe que aprovou essa sua obra, que é tese de doutorado, eu teria orientado ao colega a desistir do argumento (com essa antítese aqui resumida) e a investir na elaboração de uma mais rica e esclarecedora gramática normativa, que partisse sim dos textos gregos, mas que não desprezasse a metodologia estabelecida por gerações de estudiosos. O que mais lamento é que a obra de Murachco tenha sido adquirida por essa nova geração de estudantes. Com certeza, eles serão conduzidos a mergulhar num “meio” a tal ponto de não conseguir atingir o seu “fim”, que seria o trabalho de tradução e conhecimento advindo dos textos gregos. Que ironicamente era a intenção de Murachco, mas que não foi concretizada pela surper volorização do método. A gramática é um instrumento a ser usado. Estudar exaustivamente esse instrumento em vez de usá-lo é cair num teorismo vazio. Isso fica tão claro na obra de Murachco que ela é dividida em duas partes, uma para a teoria que explica o método e outra para a parte prática. Quando o que de fato precisamos é de uma gramática normativa de grego melhorada ao máximo, ora simplificando, ora ampliando, sempre procurando desenvolver a melhor ordem de assuntos tanto para poupar trabalho como para deixar o aprendizado o mais gradativo e agradável possível. Em todo caso, pode ser que muitos se sintam bem com o método. O que importa é se aprender e aplicar o aprendizado.
Falando agora da erudição dos estudiosos de grego bíblico, eu diria que é complicado para aqueles que possuem crenças fixas e inegociáveis, realmente conseguirem uma boa tradução. Esse tipo de pessoa, caso seja conhecedora de noções fundamentais do grego bíblico, sempre tenderá a querer justificar, ou sequer perceber, certas passagens que originalmente chocam-se com suas convicções de fé denominacional. E isso é por demais comprometedor para imparcialidade do estudioso ou pesquisador do idioma grego da Bíblia. Como exemplo, posso citar os aspectos verbais do grego, que são muito maleáveis e fáceis para dizer qualquer coisa, e, por isso mesmo, qualquer saída é possível de se interpretar, usando uma análise isolada do verbo em uma passagem bíblica. O estudante iniciante deve, pois, ficar prevenido de que, ao analisar uma passagem bíblica, não pode se ater a um determinado componente analítico-sintático de modo exclusivo. Todas as partes construtivas de uma sentença em grego, sejam os advérbios, as preposições, adjetivos ou os substantivos, devem ser considerados; o significado de uma palavra, muitas vezes, é a coisa mais importante de uma frase. Na Antiguidade e principalmente na cultura helênica, uma palavra era bem mais carregada de significado do que hoje. O grego é uma língua que, antes de trabalhar com sintaxe, se preocupava com o significado dos vocábulos; eles possuem vida própria, basta uma preposição se compor com uma palavra para que ela seguisse outra nuance de significado ou conduzisse o raciocínio para outra compreensão. Muitas vezes, o trabalho de tradução de uma sentença é mais proveitoso para se buscar o significado de uma palavra do que outra coisa, daí o valor que existe numa tradução de uma passagem aparentemente insignificante de um texto de grego clássico, comumente desconsiderado pelos religiosos, que, por isso mesmo, terminam como um cão a perseguir a própria cauda, quando não entendem um termo, palavra ou expressão em determinada passagem da Bíblia, ou, na pior das opções, determinar certos significados sem nenhuma base linguística, histórica ou etimológica. Vê-se por isso que quem deseja realmente aprender o grego bíblico precisa se inteirar do grego clássico e da cultura helênica.
É necessário um compromisso com o texto original grego da Bíblia, e não com uma tradução específica; ao que parece, os religiosos que estudam o idioma grego se limitam a apenas conhecer e usar o dialeto para defender suas ideias preconcebidas de crença religiosa ou para criar um “status” de autoridade, visando apoiar certos posicionamentos que, muitas vezes, a doutrina registrada na Bíblia não aprova.
Esse compromisso com determinadas traduções têm impedido o trabalho de re-tradução da Bíblia a partir dos originais. Poucos sabem, mas as traduções da Bíblia, especificamente as do Novo Testamento, são mais vinculadas à Vulgata Latina do que aos textos originais em grego. As chamadas revisões de antigas traduções ficam sempre comprometidas; o correto era se fazer outra tradução, totalmente nova, buscando um vínculo com o linguajar atual, e não com esta ou aquela crença ou com alguma tradução. É verdade que há certas palavras portuguesas da Bíblia já consagradas pela tradição, mas há também muitas dessas palavras que perderam o significado que tinham quando foram usadas para traduzir as palavras gregas, e outras que infelizmente foram mal traduzidas em comparação com algumas que são mais equivalentes para com o texto grego. Meu encargo pessoal concentra-se no estudo das palavras bíblicas. O texto áureo da minha vida de estudioso do grego koiné é 2Tm 1.13: “conserva o modelo das sãs palavras que de mim ouviste na fé e na verdade que há em Cristo Jesus”. Tal responsabilidade, às vezes, deixa-me dias e noites na busca pelo vocábulo ideal ou da expressão que mais se aproxime da palavra grega do texto sagrado. Esse estudo filológico do lado grego e do lado português é a base de todo o trabalho do estudo da koiné para a tradução e a interpretação da Bíblia. Graças à providência divina, a Bíblia é muito bem suprida de subsídios para se obter um excelente vocabulário bíblico. O que falta mesmo é a boa vontade para pôr a mão ao arado.
Vejamos especificamente as falhas que as obras de grego bíblico têm cometido:
Os dicionários e vocabulários de grego bíblico além de serem traduções de obras estrangeiras, não combinando as palavras gregas com as portuguesas, apresentam diversos erros que se perpetuam em novas reimpressões sem que ninguém os aponte. Isso compromete todos os eruditos de nosso país.
Há mais de 20 anos, o Léxico de Novo Testamento grego/português, da editora Vida Nova, é publicado no mercado editorial brasileiro sem que nenhum dos professores, revisores, tradutores e eruditos se manifestassem no que diz respeito aos seus erros. Esses erros são gritantes e comprometedores para estudo do grego bíblico, afinal de contas esse dicionário foi por duas décadas a principal obra de referência do grego koiné em nosso país. Isso mostra que alguma coisa não vai bem, ou esses especialistas esbanjam uma falsa erudição ou são coniventes com o deus da preguiça e moleza que tem dominado as sociedades bíblicas e editoras do Brasil, que só pensam em dinheiro. A publicação desses erros é no sentido mais ambíguo possível, indo do literal para o simbólico, apocalíptica, pois tanto revela, assusta e traz ao fim, uma geração de espertalhões que estavam sentados na cadeira de mestres em grego. Confira na p. 235.
Essa crítica ácida é indubitavelmente necessária, exatamente porque errar como estudante é perdoável, mas errar como referencial de ensino é inadmissível, pelo prejuízo devastador que isso pode provocar.
As gramáticas de grego bíblico, como já foi dito, evitam fazer novas traduções. Os autores não traduzem os textos bíblicos. Exigem dos leitores o exercício da tradução, mas os exemplos que fornecem em seus manuais, não são de traduções próprias, e por isso erram, criando regras baseadas nas traduções feitas (por outros) e não no texto grego. Obs.: Evito declinar nomes para evitar alguma chance de valorizá-las pela crítica, e não por medo de processos ou coisa parecida.
Erram também nos verbos, quando cometem diversos exageros ao deixar transparecer a ênfase que colocam nos aspectos verbais. É muito mais prático o estudante traduzir sem se preocupar com possíveis modos fixos do uso que este ou aquele tempo verbal costuma ter; tais conclusões devem surgir naturalmente com o exercício de tradução e respectivo domínio da língua, coisa que os tais peritos não demonstram possuir, exatamente porque não traduzem. Vivem com seus alunos numa cumplicidade de anti-saber pela justificativa de que o idioma grego é difícil. O idioma grego não é difícil de ser apreendido, o que exige é tempo e dedicação. É impressindível que além da aprendizagem dedutiva (que consiste na memorização das regras gramáticas e do vocabulário) haja também também a indutiva (que se estabelece no contato com o texto grego da Bíblia).
Quando discorrem sobre os casos gregos também desenvolvem muitas definições ou princípios que não existem e que são fruto de interpretações teológicas, e não de gramática. E cometem falhas nas preposições, fornecendo definições fixas em determinados paradigmas que acabam por comprometer a flexibilidade que a tradução exige. As ideias espaciais que as preposições possuem assemelham-se a quando os nossos professores de Matemática nos explicavam qual a origem das fórmulas que precisaríamos usar para resolver os exercícios. Ninguém ao resolver um exercício fica recorrendo às origens das fórmulas, do mesmo modo o estudante não deve traduzir um texto grego recorrendo às origens espaciais das preposições. Pensar que a preposição evn sempre significará “dentro” porque seu significado original é este, é desconhecer completamente a versatilidade da língua grega no seu aspecto semântico.
A meu ver, não é a gramática que deve fazer o aluno “pensar a língua”, como diz, na orelha da Obra “Língua Grega – visão semântica, lógica, orgânica e funcional”, Márcia Sá Cavalcante Schuback da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Söbertörns Hogskola, de Estocolmo. Esse processar pensante e edificante decorre dos textos gregos bem traduzidos, de um estudo sinonímico das palavras e de uma pesquisa da equivalência dos dois idiomas envolvidos no processo de tradução. A gramática, com todo respeito devido que a ela se deve ter não passa de um instrumento. Se ela fosse personificada, com certeza diria isso para aqueles que parecem querer tomar os direitos das obras técnicas, que possuem seu valor em si mesmas. Os copiladores de gramáticas e dicionários deveriam ter a humildade de sair do foco. É compreensível que quem cria um método deva exigir reconhecimento, mas pode soar como algo supimpa fora da conta. Qualquer um bem esforçado e dedicado estudante de grego pode desenvolver um método bom e conveniente ao seu público-alvo. Mas a gramática, aquela obra que não pertence a ninguém, como vemos na obra de Antônio Freire, é livre, básica e elementar para todos os métodos que se queiram criar, seja usando música, matemática ou até o idioma surdo-mudo. Transformar a gramática em algo particular e subjetivo é buscar se isolar no conhecimento de um assunto que por natureza é coletivo. O idioma grego como língua morta ficou de certa forma congelado no tempo, a liberdade e as modificações que acontecem com uma língua falada não podem ser aplicadas a ele. Portanto, criticar a gramática grega é, de certa forma, destruir o passado, que, ao contrário do presente e do futuro, é inviolável, sob pena de tirarmos o chão de nossos pés, ficando tão livres e soltos como se ficássemos perdidos no espaço sideral, sem saber para onde ir, onde estamos e quem somos.